Dançando Conflitos, Desdobrando Pazes: Movimento para a Transformação de Conflitos

por Paula Ditzel Facci

A situação mundial atual é problemática: violência, injustiça social, crise ambiental e climática, pandemia e polarização estão afetando nossas vidas e o planeta de maneira alarmante. Os desafios para a paz e o conflito parecem intransponíveis, especialmente quando limitados por uma narrativa que diz que os governos são os únicos atores que têm o poder de decidir sobre a paz e os conflitos. Isso é problemático. Em primeiro lugar, os governos estão, no mínimo, com dificuldades de dar conta de tamanho esforço. Segundo, relegar questões de paz e conflito apenas aos governos priva os seres humanos e suas comunidades do poder de responder dinamicamente aos desafios da vida.

Mas se não apenas os governos, quem mais tem poder e responsabilidade para lidar com paz e conflitos então? Nós! Eu, você.

Você tem potencial para desdobrar a paz agora mesmo! E além disso, você pode dançar!

Isso não significa destituir os governos de sua real responsabilidade, ou ser apático quanto ao importante papel que eles devem desempenhar nas questões de paz e conflito. Significa tornar-se parte da mudança que você deseja ver!

Frequentemente, as pessoas se mostram desconfiadas ou céticas em relação a essa visão. E elas estão certas. Danos significativos foram causados em nome da paz. Portanto, é saudável perguntar: “de que paz você está falando e de quem é essa paz?”.

Meu sonho de acabar com as guerras me levou a estudar relações internacionais. A busca por recursos mais concretos para me engajar na transformação de conflitos em mim e em minhas comunidades me levou aos estudos de paz e conflitos. Incentivada a pesquisar algo que me apaixona, escolhi a dança. Amo dançar, danço desde criança, e tive o privilégio de vivenciar diferentes estilos, como samba e lambada, balé, jazz e contemporâneo, e movimento livre e espontâneo.

Essas experiências me mostraram o potencial da dança para contribuir para a paz. Eu sabia, principalmente a partir do meu corpo e da minha intuição, que a dança poderia abrir espaços para desdobrar paz. Aquele momento em que o movimento se alinha com a respiração e as batidas do coração se harmonizam com a música. O ar toca profundamente meu ser interior e acaricia minha pele, conectando os mundos interno e externo. As fronteiras começam a se desfazer e tudo se torna som, vibração. Essas experiências me incentivaram a pesquisar dança e paz.

E você, como você experimenta paz?

Perguntando a diferentes grupos, eu colhi variadas respostas, como assistir ao pôr do sol, dar as mãos a uma pessoa amada, caminhar na natureza, surfar, dormir, orar, meditar.

Existem diferentes maneiras de experimentar a paz e várias interpretações de paz.

As pazes são plurais e são muitas.

Perceber o potencial de viver a paz nesse momento pede uma mudança de percepção de uma paz utópica a ser alcançada em um futuro distante (se seguirmos passos pré-determinados), para uma paz que é incompleta, imperfeita, viva e imbuída de potencial.

Para abordar as pazes, gostaria de abordar três perspectivas:

  • Paz como experiência

  • Paz como processo

  • Paz como ação

 A paz como experiência

Percebida durante atividades como a dança, a meditação, o estar em contato com a natureza, entre outras, a paz como experiência está disponível como um potencial a ser desdobrado nos seres humanos. Esse desdobrar é facilitado pelo cultivo de uma prática cotidiana que abra espaço e tempo para que a paz se desdobre com intenção, dedicação, disciplina e consciência de seus impactos.

Até agora, isso parece muito fácil. Então eu danço, medito ou rezo, e experimento paz sempre que eu quiser, certo?

Bem, é um pouco mais complicado do que isso. Nem toda dança é pacífica: danças podem ser usadas para promover violência e já foram usadas para se preparar para a guerra. Além disso, nem toda vez que eu danço, eu sinto uma experiência de paz. Às vezes é apenas tagarelice mental ou há dor e sofrimento envolvidos.

Além disso, o que acontece quando diferentes pazes coexistem? Quando minha maneira de sentir paz é dançando ao som de música alta, e a maneira da pessoa ao meu lado é lendo um livro em silêncio? Quando uma mãe experimenta paz estando com sua família, enquanto sua filha adolescente prefere ouvir música sozinha em seu quarto? Entender que existem diferentes formas de vivenciar a paz ajuda a ressignificar aquele momento do relacionamento e abre novas possibilidades de engajamento com a situação.

E o que acontece quando minha maneira de experimentar a paz é caminhar ou meditar na natureza, e a natureza está queimando? Conflitos surgem. A paz como experiência frequentemente revela conflitos na vida diária.

Paz como Processo

É aí que entra a paz como processo, uma paz que inclui conflitos e que se desdobra em sua transformação.

Conflitos? Que conflitos?

Nas sociedades modernas, muitos de nós aprendemos que os conflitos são ruins e que precisam ser resolvidos e esquecidos. Temerosos, fingimos que eles não existem e acabamos não lidando com eles em tempo hábil. Isso é contraproducente, pois os conflitos são características naturais das relações humanas. Eles não são necessariamente violentos, mas a má notícia é que podem se tornar violentos se não forem abordados.

Eu tive um conflito. Bem, eu tive e tenho muitos conflitos. Este evoluiu a partir de um comportamento inautêntico, que causou danos a mim mesmo e a uma pessoa querida. Depois de algum tempo fingindo que não era grande coisa ou que era algo do passado, decidi enfrentar o problema. Pedi perdão e, no processo de transformação, essa pessoa e eu fomos capazes de retrançar o tecido do nosso relacionamento.

Ótimo, certo? Transformei o meu conflito, ele foi resolvido, assinamos um mini tratado de paz! Bem, na verdade não. Fui perdoada, mas não havia me perdoado. Esse conflito continuou a influenciar minha vida de maneira sutil, mas perniciosa. Influenciou minha confiança, meu relacionamento comigo mesma e com os outros, minhas percepções sociais e os papéis em que me via.

Quatro anos depois, estou em minha primeira oficina de movimento espontâneo, dançando havia alguns dias. O piso de madeira brilhante e as cortinas esvoaçantes convidavam para a dança. Mas naquela tarde o desafio seria maior, pois fomos convidados a dançar com a culpa e com a vergonha. A situação se ofereceu para que eu olhasse para aquela vergonha que ainda estava enraizada em mim.

Na dança, algo aconteceu. Muitas lágrimas, suor, calor, mais lágrimas e suor, e a vergonha que eu carregava pareceu derreter, abrindo espaço para a compaixão. Essa experiência me mostrou a possibilidade de dançar com os conflitos como forma de desdobrar a paz como processo.

Paz como processo nos convida a ver os conflitos como oportunidades, a habitar na confusão da vida e a mover-nos com o que está presente dentro e entre nós, envolvendo-nos com o caos, as sombras e as emoções. À medida que nos movemos com dores, sentimentos, emoções, conflitos, encontramos nós atravancados de energias. Dançar pode ajudar a desbloquear essa energia, recuperando o fluxo e redirecionando-o para formas mais auspiciosas de relacionamento consigo mesmo e com os outros.

Então dançamos, temos experiências de paz, dançamos nossos conflitos, nos movemos com nossas sombras, mas isso é tudo, mantemos isso em nossas bolhas? E quanto ao mundo?

Esta é uma questão importante, e é aqui que a paz como ação acontece. Movimento faz circular essas energias que estavam constritas, que podem então se propagar para além do intrapessoal de forma intencional, inspirando mudanças.

Paz como Ação

A paz como ação nos convida a transformar padrões violentos em nós mesmos, em nossos relacionamentos, em nossas comunidades e sociedades. Ela encontra inspiração no maravilhamento provocado por experiências de paz e infunde-o na vida diária. Ela redireciona as energias fomentadas pela paz como processo, permitindo que elas fluam para as ruas de maneira que sirva à vida, nos encorajando a fazer a diferença no mundo.

E como é a paz como ação? Ela pode tomar muitas formas, como por exemplo alterar hábitos nocivos, refletindo sobre como perpetramos violência e nos comprometendo a mudar, tendo consciência dos sistemas de opressão que perpetuamos e transformando-os, denunciando a violação e nos mobilizando por direitos. Paz como ação também pode se traduzir em explorar formas mais auspiciosas de relacionamento em nossas comunidades e com este planeta, amando radicalmente a si mesmo e aos outros, e dançar para celebrar a vida!

Dançando conflitos

Dnaçando Conflitos, Desdobrando Pazes é uma jornada experimental para cultivar a paz como experiência, processo e ação. Ela convida a um mergulho contemplativo nas nossas profundezas intrapessoais e relacionais, ajudando a elicitar recursos para o autoconhecimento, transformação e florescimento. A jornada é composta por:

  • Ancorar a presença no corpo e na respiração, avivando os sentidos e conectando a respiração com os ares dentro de nós e ao nosso redor na vibrante interconexão da vida.

  • Observar dinâmicas internas: acolher os sentimentos e cuidar da dor, ouvindo os sinais que apontam a padrões tóxicos e cultivando maneiras auspiciosas de se mover.

  • Testemunhar emoções e sofrimento, explorando maneiras de mover-se gentilmente com eles, dançando com os conflitos, mudando perspectivas e descobrindo alternativas transformadoras.

  • Contatar o poder criativo em conexão com vulnerabilidade para transformar com empatia, alinhando experiência e linguagem em compaixão e ação.

  • Praticar dancestorm, evocar diferentes possibilidades e fomentar plataformas relacionais para transformação criativa.

Dançando conflitos, cultivamos recursos para desdobrar a paz como experiência, processo e ação. Temos potencial para viver a paz agora, um passo de cada vez.

Vamos dançar?

Paula Ditzel Facci é pesquisadora de paz e facilitadora de métodos criativos de transformação de conflitos, autora de Dancing Conflicts, Unfolding Peaces (Palgrave Macmillan 2020) e facilitadora de nosso programa de Pós-graduação Paz & Mente.

Texto adaptado da palestra de mesmo nome (em inglês) apresentada na Embodiment Conference em outubro de 2020. O vídeo em inglês está disponível em: https://pauladitzelfacci.com/pt/videos-br/

Convidamos você a assistir a Live sobre Transformação de Conflitos e Estudos de Paz com Paula Facci, já disponível em nosso canal.